
Oi, Tinho
Eu ainda me lembro uma bronca que tu me deu em 1997 porque eu desafinei ao cantar um hino. Você era terrível. Julival era mais didático. Eu peguei o melhor dos dois. Eu cresci num lar disciplinado, de músicos disciplinados, de homens de cor trabalhadores da roça de cacau. Muitas vezes eu vejo que isso é que é privilégio.
No início eu te senti tão duro comigo (te ocorria ser assim, no início, com crianças). Depois foi você que me ensinou os números em inglês. Você me deu tudo, Tinho. Eu olho tudo que tenho e vejo você, Julival, Samuel, Ezequias, minhas irmãs todas lutadoras. Mas foi você que corrigiu primeiro meu inglês, e, pasme, me deu a honra de ter sido seu professor particular.

Eu demorei pra entender o homem negro incrível que você era, mesmo nas suas contradições. Foi você que me contou as primeiras histórias de racismo, que muitas vezes preenchem meus trabalhos. Uma tal professora que te chamava de burro, uma velha branca miserável que te humilhava, as mães que não te deixavam chegar perto das filhas. Eu, como quem não entendia, entendi tudo.
Infelizmente veio a espondilite ancilosante, esse mal desconhecido que nos levou a todos junto com você hoje, irmão. Eu assumo meu erro, que tentei corrigir a tempo. Naquele tempo, você era julgado por todos como preguiçoso. Ali nos meados dos anos 2.000 você sentia muitas dores, e todo mundo achando que era vagabundagem. Anos depois, com uma piora significativa, uma leniência do maldito SUS brasileiro, esse que só esses progressistas de quinta categoria defendem como universal, você perdeu seus quadris em vida, perdeu sua coluna vertebral, ficou acamado. Mas isso não te parou.

Nesses últimos dez anos lutamos bem ferozes. Minha nobre mãe foi ao ministério público, a gente conseguiu te aposentar. A primeira coisa que fiz como professor da UFSB foi ir até você e decidir que o pouco que eu podia fazer era te dar a casa, essa que te viu partir hoje. Essa maldita casa que entra para a minha lista de mágoas.
Hoje eu te vi no caixão por uma videochamada. Meu coração estourou de alegria por te ver lindo, irmão, enquanto meus olhos não obedeciam e se enchiam de lágrimas. Daqui do outro lado eu vejo sorrisos, seu e de mainha.

Ela nunca mais veio em meus sonhos, mas lembro de quando ela vinha. Espero que algum dia você venha me visitar, rir comigo, como na nossa última ligação, quando falamos de quão valente você era. A gente ali, na beira da rodagem e você defendendo Julival. “Ai de quem mexesse com um dos seus”.
Eu sempre me senti protegido por você, meu irmão. Sempre. Inclusive em minha homossexualidade, quando, sem dizer nada a você, levei um namorado meu em sua casa e lá dormimos. Você agiu com enorme naturalidade, de um tipo que me assustou. Sim, você era um homem incrível.
Mais tarde, eu e você conversamos muito sobre o racismo e você continuou a ser meu grande professor. Um grande ilustrador da vida real de como o racismo funcionava, um leitor da minha identidade.
Hoje tenho a sensação de que uma parte gigante intelectual de mim vai contigo. Você me tira palavras e me deixa indefensável. Mas eu tive tempo de te dizer o quão particularmente negro você era, o quão incrível, qual a consciência que você tinha de si, o quanto me ensinava, meu irmão.

Quem vai assistir Chaves comigo agora? E A Grande FamíliaI? Me sinto abandonado, cabra.
Eu desejo continuar seguindo, e escrevo na esperança de encontrar forças nesta carta mal redigida às pressas, onde as lágrimas são as maiores escritoras. Desejo encontrar forças pra coexistir neste mundo onde não pudemos te dar a sua cirurgia, mas nunca desistimos, mesmo nem sempre somos vitoriosos. Hoje, infelizmente, perdemos. Desculpa por ter esperado tanto por este mundo que não te valorizou a contento.
Te amo.
Até logo.
Gabriel Nascimento
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